O impacto de um porto

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Imagine se na região onde você mora começam a construir um enorme prédio bem em frente à sua porta, provocando a destruição do seu terreno, com emissão rotineira de poluição dia e noite e uma onda frequente de barulhos. Um dia, a construção desse prédio passa a interferir ainda mais na sua rotina. A porta por onde você saía e entrava todos os dias passa a ficar tomada por entulhos ou restos de construção. Sua liberdade de locomoção e sobrevivência ficam prejudicadas. Esse cenário hipotético ajuda a entender o que se passa com a fauna e flora de uma região durante a edificação de um porto. A vida de infinitas espécies é alterada para sempre e as consequências se tornam irreversíveis.

Infográfico OJC: Impactos causados pela construção de um Porto
Infográfico OJC: Impactos causados pela construção de um Porto

O cotidiano das pessoas que vivem nas proximidades daquele local também nunca mais será o mesmo. A vegetação jamais voltará a ter a mesma riqueza. Comunidades tradicionais e indígenas acabariam expulsas dos locais onde vivem há séculos. Prejuízos incalculáveis para o turismo e para a economia também seriam acumulados. E essas seriam apenas algumas das consequências impostas pela construção de um porto à região onde ele se instale. Desde a sua implantação, e durante todos os dias da sua operação, o local onde ele foi feito vai sofrer com novas e constantes agressões e oferecer riscos diariamente. Os impactos das atividades portuárias ao meio ambiente são decorrentes da instalação da infraestrutura portuária e da utilização desse mecanismo para o trânsito das mais variadas cargas.

No Paraná, especialmente, esse tema ganhou relevância em razão da possibilidade de o município de Pontal do Paraná, no litoral do Estado, receber um porto privado, que seria construído em terras públicas. Parte delas, segundo investigações do Ministério Público, teria sido grilada (ou roubada) dos paranaenses entre as décadas de 1940 e 1950. Além disso, a obra ficaria localizada a poucos metros da Ilha do Mel, um Patrimônio Mundial da Humanidade reconhecido pela UNESCO. Um porto privado, mas que pode ser pago com dinheiro público, feito em terras públicas e que impactaria para sempre o modo de vida das comunidades e a saúde do meio ambiente da região onde pode ser feito. A soma de incoerências e abusos que envolvem essa intenção não é pequena.

Em todo Brasil, resta apenas 7% da Mata Atlântica em bom estado de conservação. Grande parte desse remanescente fica no litoral do Paraná, no trecho que engloba, justamente, a Ilha do Mel e proximidades.

“Qualquer atividade portuária causa uma série de impactos na sociedade, em termos econômicos alguns bastante positivos, mas a um preço ambiental e social altos e não compensáveis a curto, médio e longo prazo”, ressalta a bióloga Camila Domit, pesquisadora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde é responsável pelo Laboratório de Ecologia e Conservação, o LEC. Camila lembra que a construção de um porto altera profundamente a vida animal que está inserida na região.

“Ocorre o desmate da vegetação da área costeira e a construção de estruturas rígidas, como o píer de atracação dos navios, que alteram a margem e a dinâmica do mar na área ao redor à costa. Além disso, o movimento dos navios provoca ondulações que acabam desgastando as encostas, ou zonas marginais”, explica Camila. A construção de um porto, portanto, praticamente redesenha o litoral da região onde está inserido.

A qualidade da água é outro ponto que acaba profundamente alterado em virtude das operações portuárias. Segundo a pesquisadora, os riscos diários de vazamentos de combustíveis e a queda de produtos dos containers que os transportam afetam gravemente o ambiente aquático. “Caso caiam grãos de soja no mar, por exemplo, o que não é nada difícil de acontecer, a água e os peixes são diretamente afetados. A soja influencia a produção em excesso de nutrientes e os grãos podem ser ingeridos pelos peixes e demais animais marinhos. A soja não é um item que faz parte da dieta dos animais e, por isso, também pode contribuir com alterações e problemas a saúde deles”, explica Camila.

Imagem de acidente ocorrido no Porto de Santos, São Paulo, em 2017. Crédito: Divulgação Ibama
Imagem de acidente ocorrido no Porto de Santos, São Paulo, em 2017. Crédito: Divulgação Ibama

A alteração da água é outro fenômeno que ocorre pelo processo de “dragagem”, que é a operação de retirada dos sedimentos do fundo do mar. “A dragagem causa alterações na salinidade e turbidez da água. E ainda traz compostos químicos que estão no fundo do mar de volta à superfície. A disponibilização dos poluentes químicos atinge a cadeia alimentar, desde micro-organismos até golfinhos e peixes”, relata.

 

 

 

Risco diário de contaminações

Ave contaminada por óleo de vazamento de um navio. Crédito: Divulgação
Ave contaminada por óleo de vazamento de um navio. Crédito: Divulgação

A operação de um porto inclui, ainda, o risco diário de contaminação dos animais. “A ingestão de substâncias tóxicas afeta drasticamente a saúde dos organismos e a maior preocupação está no efeito cumulativo das múltiplas atividades envolvidas na operação de um porto diariamente. São diversos riscos e exposição aos animais, mas também a saúde humana. Melhorar e aprimorar o que já existe parece uma medida mais sensata para os que têm como prioridade melhorar a qualidade de vida humana e da fauna”, afirma.

Essa é a mesma conclusão defendida pela doutora em sistemas costeiros e oceânicos, Marina Reback Garcia. Para ela, a contaminação crônica do oceano devido à atividade portuária é inevitável. “Ficamos reféns da contaminação porque não há como evitar que ela aconteça onde existem portos. No caso de acidentes, ainda existe a possibilidade de eles acontecerem ou não, mas a contaminação crônica faz parte da atividade portuária pela própria movimentação das embarcações, pela forma com que é feita a proteção das estruturas de metal. Existe uma série de impactos já conhecidos e previsíveis que ocorrem em todos os portos do mundo”, afirma.

Além disso, a impossibilidade de adaptação dos animais a esse cenário agressivo também gera sérias preocupações. “A construção e operação de um porto mudam o cotidiano da fauna. Os animais têm mais dificuldade de adaptação e essa mudança pode levá-los à morte. As comunidades tradicionais também passam por sérias dificuldades de adaptação. Para uma comunidade indígena, por exemplo, ter que sair do espaço onde mora é algo muito complicado e de difícil adaptação”, aponta Juliano Dobis, diretor-executivo da Associação MarBrasil.

Comunidades afetadas

Um porto também gera poluição sonora e atmosférica diária. Comunidades indígenas, tradicionais e a população, especialmente a local, seriam diretamente afetadas, já que a construção do empreendimento provoca uma mudança completa na dinâmica da comunidade e o aumento do tráfego pesado, como caminhões, na região. “Muitas vezes, também ocorre um crescimento urbano desordenado que altera a região e a vida de todas as pessoas que moram na localidade”, reforça Camila.

Apontar os riscos da construção de um porto, no entanto, não significa defender que um complexo portuário não tenha sua importância econômica. “Um porto é muito importante economicamente. Mas será que precisamos de mais portos no Brasil? Não seria mais prudente utilizar a tecnologia que dispomos para melhorar, otimizar e ampliar portos que já existem?”, pergunta a pesquisadora.

 

Acidentes envolvendo portos no Brasil

A história demonstra que acidentes em regiões portuárias não são raros. Não é preciso ir muito longe para comprovar esse fato. Em novembro de 2004, uma explosão do navio Vicuña, de bandeira chilena, no Porto de Paranaguá deixou quatro mortos e provocou um imenso vazamento de óleo no mar. O acidente causou danos ambientais na baía de Paranaguá, considerada um importante berçário de espécies marinhas no Paraná. Foram localizadas manchas de óleo em uma extensão de até 18 quilômetros.

No mesmo ano, o Porto de Paranaguá presenciou outra grave situação. Um navio estava sendo abastecido com 850 toneladas de óleo combustível quando 900 litros transbordaram e vazaram para o mar. A mancha atingiu as ilhas das Cobras, Cotinga, Piaçaguera e do Mel.

Acidente do Navio Vicuña em 2004 no Porto de Paranaguá. Crédito: Defesa Civil do Paraná.
Acidente do Navio Vicuña em 2004 no Porto de Paranaguá. Crédito: Defesa Civil do Paraná.

No Rio Grande do Sul, no ano passado, um vazamento de óleo de uma embarcação contaminou a orla marítima do estado. Outro complexo portuário que, geralmente, é notícia por poluição ambiental é o de Santos. Em 2019, por exemplo, foi registrado um vazamento de óleo durante o abastecimento de um navio norueguês.  Dois anos antes, 100 litros de óleo combustível caíram no ecossistema da praia santista.

O Porto de Santos coleciona incidentes do tipo. Em 2018, ocorreu um vazamento aproximado de 10 mil litros de óleo no mar. A Cargill Agrícola foi autuada no ano passado em R$ 2,5 milhões pelo Ibama devido ao vazamento de óleo de um navio operado pela empresa que estava atracado no Porto de Santos em 2017. O óleo atingiu o mar e se espalhou por área de dois mil metros quadrados, causando grande mortandade de peixes.

Em 1990, um navio carregado com 33 mil toneladas de óleo diesel sofreu um acidente e parte de sua carga foi jogada ao mar, causando um dos mais graves acidentes ecológicos registrados na rota portuária do Maranhão. No Porto de Pecém, no Ceará, foi registrado em 2017 acidente ambiental envolvendo o transporte de carvão mineral. O resíduo chegou a ser lançado na faixa de praia, atingindo o mar em frente ao terminal.

Outros exemplos comprovam que a instalação de um complexo portuário altera o ritmo da vida marinha. Um caso emblemático é o Porto de Suape, ao sul de Recife. Especialistas consideram que a edificação portuária alterou a rota dos tubarões nessa região de Pernambuco, o que elevou os casos de ataques a seres humanos. Ele foi inaugurado em meados da década de 1980, mas passou a funcionar a pleno vapor a partir dos anos 1990, quando começaram os ataques de tubarões. Antes, quase nenhum caso havia sido registrado na região.

Um estudo do Ministério Público de Pernambuco apontou ainda que, além de haver relação direta entre as obras e a mortandade dos peixes protegidos por lei, a atividade do Porto impacta e destrói territórios pesqueiros.

A construção do Porto de Açu, em São João da Barra, no Rio de Janeiro, também gerou impactos ambientais, conforme um estudo realizado pela Universidade Estadual do Norte Fluminense. As obras elevaram o nível de salinidade em pontos de água doce na lagoa de Iquiparí e do canal de Quitingute. Isso interfere na vida de agricultores, pescadores e população local, que dependem da água para consumo próprio e irrigação.

Pontal corre risco de ter um complexo industrial portuário

O ecossistema e as comunidades tradicionais do litoral do Paraná sofrem sérios riscos caso um complexo industrial portuário que pode se instalar na região saia do papel. Trata-se de um investimento privado que pode ser construído em terras públicas em frente a um dos paraísos turísticos e naturais do estado, a Ilha do Mel, que é também um Patrimônio da Humanidade reconhecido pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). O complexo em Pontal do Paraná ficaria a poucos metros da Ilha.

Para que possa ser feito, 27 milhões de metros quadrados de Mata Atlântica seriam derrubados ou afetados pela área portuária, comprometendo irreversivelmente a flora e fauna locais de uma das últimas porções de Mata Atlântica bem conservadas do mundo.

Não bastasse isso, o complexo portuário geraria intensa contaminação do solo, do ar e do mar, comprometendo a vida marinha na região, já que a operação diária de um porto afeta diretamente a saúde do ecossistema.

A poluição, como demonstram os próprios Estudos e Relatórios de Impacto Ambiental do complexo portuário, também representa um prejuízo para a qualidade de vida das abelhas e a consequente polinização de florestas. Soma-se a isso que o próprio complexo representa uma redução significativa da qualidade da água, podendo comprometer pescadores e a perda de habitat dos animais. Isso provocaria violenta mudança na cadeia alimentar.

A qualidade de vida dos seres humanos também acabaria diretamente afetada. O crescimento urbano desordenado, ocasionado pela construção e pela operação do porto, elevam as chances de proliferação de diversas doenças, como HIV e sífilis e, também, da dengue. A piora na qualidade do ar geraria uma incidência maior de doenças respiratórias.

Esse crescimento populacional ocasionará uma sobrecarga nos sistemas de saúde, segurança e educação de Pontal do Paraná. Além disso, em regiões portuárias, como revelam os estudos, aumentam os casos de prostituição, inclusive o infantil. O inchaço populacional também provoca efeito no mercado de trabalho: haverá poucas oportunidades de emprego para absorver um maior número de pessoas.

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