Multinacional profetiza iminente apagão energético no Paraná. Mas, por quê?

Empresa Engie Crime ambiental Paraná Brasil
Empresa Engie Crime ambiental Paraná Brasil

Para a Engie, que é a maior empresa privada no mercado energético brasileiro, o Paraná corre risco iminente de sofrer um apagão tão dramático quanto o do Amapá. No mês passado, o Amapá ficou 90% sem energia e a capital, Macapá, passou cinco dias no escuro, dependendo de um rodízio emergencial para a população retomar minimamente suas vidas após protestos contra o governo irromperem pelas ruas. 

O abastecimento no Amapá só foi restabelecido no final de novembro, 22 dias após um incêndio ter desencadeado o desastre que comprometeu três transformadores da mais importante subestação da região. No comunicado institucional que a Engie publicou, no dia 25 de novembro, intitulado “Roraima, Paraná e diversos estados sob a iminência de apagão”, a empresa faz críticas à infraestrutura energética do estado administrado por Ratinho Júnior (PSD).

O braço brasileiro da multinacional Engie, com sede na França e presença em 70 países, nos cinco continentes, compara diretamente o Paraná ao Amapá na mancheteNo texto, diz que “no Sul do país, o Paraná também está prestes a enfrentar muitas dificuldades”. E continua: “a carência energética já pôde ser percebida na região ao longo dos últimos anos, principalmente no setor de agronegócio e industrial, que têm sofrido grandes oscilações e prejuízos”. 

Catástrofe de ocasião

Só que se o apagão que a Engie profetiza ocorrer no Paraná, na mesma proporção do visto no Norte do Brasil, prejudicaria 10 milhões de habitantes – doze vezes mais que os 762 mil atingidos pelo desastre no Amapá. Contudo, na hora de embasar suas suposições sobre o estado, a empresa privada não mostra evidências. Mais que isso, omite que sua preocupação súbita com o estado, onde opera há 20 anos, coincide com a suspensão pela Justiça Federal de um negócio bilionário – o Projeto Gralha Azul.

No comunicado da Engie, o único trecho assinado é atribuído a Márcio Daian Neves, diretor de implantação desse projeto da multinacional no Paraná. E é bem mais acanhado no tom. Em vez de afirmar que o Paraná corre risco iminente de apagão, como ameaça a manchete, ele se limita a dizer que a região de Ponta Grossa enfrenta “defasagem dos sistemas de transmissão atuais”, e que esta circunstância “incorre em problemas de fornecimento para o setor industrial e o agronegócio”.

Mas, então, por quê? O que a Engie ganha com o catastrofismo?

Falando pela Copel

Procurada pela reportagem, a Copel (Companhia Paranaense de Energia) não quis comentar as críticas da empresa privada à infraestrutura energética do Paraná. A companhia, que é responsável pelo abastecimento de 392 dos 399 municípios do estado, disse “não ter autoridade” para discutir um apagão iminente e recomendou contatar o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) – órgão vinculado à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Procurado, o ONS não retornou o contato até o fechamento da reportagem.

Se “quem cala, consente”, a Copel perdeu a oportunidade de eliminar uma fonte de desinformação, pois a empresa pública anunciou, em 2019, um investimento maior que o Projeto Gralha Azul no Paraná. De início, seriam R$ 2,1 bilhões só na iniciativa Paraná Trifásico. Aliás, chamada pelo governo estadual de “o maior programa [do tipo] no Brasil”, uma vez que o objetivo é substituir  25 mil quilômetros de rede monofásica, instalada nos anos 1980 no interior do estado, pela mais avançada, trifásica, até 2025. 

Se a Engie está preocupada com o agronegócio, a Copel poderia acalmá-la. Pois o grande beneficiado pela ação da empresa pública paranaense é esse setor da economia, já que o trifaseamento criaria “redundância no fornecimento”, ou seja, nas palavras da própria companhia, “redes [de energia] que hoje estão próximas, mas não se conversam, passarão a ser interligadas”. “Se acabar a energia em uma ponta, a outra fornece o abastecimento e, em caso de desligamentos, os produtores rurais terão o restabelecimento da energia mais rápido”, completa a Copel.

“O programa vai transformar as cadeias produtivas do leite, da avicultura, piscicultura e suinocultura e, acima de tudo, vai levar uma energia de qualidade, garantir que não tenha queda e dar a tranquilidade para o Paraná crescer nos próximos 30 anos”, garantiu o governador Ratinho Júnior, em outubro de 2019, na cerimônia de lançamento do Paraná Trifásico, na presença da diretoria da Copel, no Palácio Iguaçu.

Na contramão do que diz a Engie sobre o Paraná, na mesma cerimônia a Copel anunciou que, além do programa, mais R$ 2,6 bilhões  seriam investidos no estado, entre 2019 e 2021, na infraestrutura de distribuição. “Estão previstas a construção de 42 novas subestações, mais de 7 mil quilômetros de linhas de distribuição de alta e média tensão e milhares de novos religadores, chaves, reguladores de tensão e transformadores de potência”, foi divulgado na época.

Preocupação súbita

Se há investimentos na infraestrutura energética do Paraná e os órgãos que regulam o setor não se arvoram em alardear o risco de um apagão iminente no estado, qual a razão da Engie investir no anúncio do desastre? Logo agora? A multinacional francesa não chegou ontem aqui, então poderia estar fazendo esse alerta há mais de 20 anos. Ela está desde 1998 no Brasil e no  Paraná. Só que até 2016, antes da campanha de marketing para reposicionamento da marca, a Engie respondia pelo nome de Tractebel Energia.

No Paraná, a Tractebel é a concessionária, até 2028, das usinas de Salto Osório e Salto Santiago. E, recentemente, a empresa sinalizou o desejo de reforçar sua posição no estado, aventando a aquisição do controle acionário da Usina de Foz do Areia, pertencente à Copel. A manifestação de interesse veio depois de o governo federal sinalizar a renovação de concessões desse tipo por mais 30 anos nos casos em que a gestão passar à iniciativa privada.

Detentora de 6,3% da capacidade instalada de geração de energia no Brasil, recentemente a Engie diversificou sua atuação no mercado, ingressando no negócio das linhas de transmissão. Ela tem dois empreendimentos em curso, com os quais vai debutar no setor, que tem um novo leilão marcado para 17 de dezembro deste ano. Um deles consiste em 1.800 km de linhas de transmissão ligando o Tocantins ao Pará, passando por 22 municípios.

O outro projeto da Engie acontece no Paraná e está parcialmente suspenso pela Justiça Federal desde 5 de outubro, após o Ministério Público Federal (MPF) e o Estadual (MP-PR) ouvirem grupos ambientalistas sobre como o traçado da Engie para as linhas de transmissão implicaria na derrubada de 202 mil árvores, entre as quais muitos exemplares de espécies em extinção como – 14 mil araucárias, 4.313 imbuias e 2.335 de cedros rosa. Só que isto puxou a ponta de um novelo, cuja trama chegou ao licenciamento ambiental de todo o negócio bilionário.

Licenciamento ambiental

Os órgãos públicos responsáveis pelo licenciamento ambiental aceitaram passivamente que o Projeto Gralha Azul atravessar duas áreas de preservação, a APA da Escarpa Devoniana e as Várzeas do Tibagi, era a opção menos danosa ao interesse público – e liberaram as obras, que já estão 63% concluídas. E talvez estivesse ainda mais perto da conclusão se não fosse a intervenção judicial do Observatório Justiça e Conservação (OJC),  do Instituto de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS) e da Rede de Organizações Não Governamentais da Mata Atlântica (RMA). 

“É muito curiosa [a escolha dos locais de desmatamento, onde subirão as torres que sustentam a linha de transmissão], porque eles [a Engie] não escolheram um traçado próximo à rodovia, ou áreas de cultivo de exóticas como pinus e eucalipto? Provavelmente porque estas indenizações custariam mais aos cofres da Engie. Há alternativas mais racionais de traçados, a UFPR encontrou duas opções menos drásticas para a linha de transmissão”, comenta o ambientalista Giem Guimarães, diretor-executivo do OJC.

A derrubada de 202 mil árvores é a parte visível da disputa judicial, documentada pelo OJC, que reuniu fotos do estrago ambiental que significa instalar novas torres de transmissão – e o Projeto Gralha Azul tem 2.118 delas. A Justiça Federal não paralisou a obra por dó das árvores, mas por entender que essa proposta, que reduz os custos de implantação do projeto,pode ter sido licenciada contornando exigências legais. 

É que o licenciamento ambiental foi fatiado em sete áreas, cada uma com menos de 50 hectares de vegetação nativa. Para os ambientalistas e para os MPs, cuja desconfiança foi acolhida liminarmente pela Justiça Federal, há indícios para suspeitar do procedimento, pois ele desobriga o pronunciamento do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) na análise do caso concreto. Sem o órgão federal, as licenças puderam ser expedidas somente pelo Instituto Água e Terra (IAT), do governo estadual. Guardem essa sigla na memória.

Ao invés de licenciar o mega projeto energético na íntegra, o IAT concordou em tratar cada área isoladamente. Então as 728 torres de Ponta Grossa a Ivaiporã e as 295 de União da Vitória a São Mateus do Sul, por exemplo, foram tratadas separadamente. Só que a primeira prevê a supressão de 49,46 hectares de vegetação e a outra, respectivamente, de 48,5 hectares – quando a regra é dispensar o Ibama se o impacto é de 50 hectares ou menos. No total, o Projeto Gralha Azul suprime 218 hectares de vegetação – 4 vezes mais que o mínimo exigido para por o Ibama no licenciamento ambiental.

Reverter, reverter, reverter

“Nós tivemos uma liminar concedida em favor de organizações não governamentais no estado do Paraná, na Justiça Federal do Paraná, com a paralisação parcial da obra do projeto Gralha Azul. Essa liminar ela tem como base a argumentação de que o Ibama deveria participar do licenciamento da supressão de vegetação, em função do tamanho do projeto, e nós estamos questionando isso, entendemos que o processo foi todo feito de forma legal”, resumiu, do ponto de vista da empresa, o diretor presidente e de relações com os investidores da Engie, Eduardo Sattamini.

O pronunciamento é do último dia 6 de novembro, para os  acionistas da empresa, na videoconferência trimestral de resultados da Engie. “Esperamos em breve cassar essa liminar, ou ter uma revisão dessa liminar por parte do juiz federal do estado do Paraná, ou caso não seja possível isso com o agravo do instrumento, a gente conseguir reverter isso no TRF4, em Porto Alegre”, avisou Sattamini, acalmando os presentes.

Responsável pelo Projeto Gralha Azul, Márcio Daian Neves, citado no comunicado catastrofista da Engie, manteve a moral no alto. “Estamos tomando todas as ações para revogar essa liminar, como foi comentado pelo Sattamini, esperamos fazer num curto espaço de tempo, de tal forma que a gente não tenha impactos aí na operação comercial prevista para 2021”, disse, depois de explicar que a suspensão determinada pela Justiça só paralisou a instalação física de quatro linhas de 500 KV. 

“Estamos antecipados”

Num trecho daquele comunicado institucional em que a Engie profetiza um iminente apagão no Paraná, ela diz que a paralisação das obras prejudica em especial os trabalhadores, que perderão sua fonte de renda. “A suspensão do projeto, além dos riscos energéticos, também coloca em risco milhares de empregos atrelados a ele. Segundo o Sindicato da Construção Civil do Paraná, pelo menos 15 mil trabalhadores atuam direta e indiretamente no projeto e tendem a ser demitidos com embargo das obras gerando impactos sócio-econômicos significativos em tempos de pandemia”, argumenta a empresa.

O trecho acima é do dia 25 de novembro. Só que para os acionistas, alguns dias antes, o recado foi muito diferente: “para evitar os impactos no projeto nós conseguimos realocar todas as equipes para as demais frentes de trabalho, isso significa dizer que nós podemos evoluir e antecipar as demais frentes, e depois retornar para as frentes de 500 KV”. “Hoje nós ainda estamos antecipados em relação ao cronograma contratual”, insistiu Neves.

A íntegra desses pronunciamentos está divulgada no mesmo site da Engie em que o comunicado catastrofista foi publicado. Aliás, a gestão de Neves, à frente do bilionário Projeto Gralha Azul, merece um elogio. No  leilão vencido pela multinacional, o prazo para o início da operação comercial é março de 2023. Mas com a gestão das frentes de trabalho ele planeja pôr as linhas de transmissão em operação comercial em setembro de 2021, um ano e meio antes. Qual o motivo da pressa?

Tempo é dinheiro

Não é à toa que os documentos da empresa direcionados aos acionistas mantêm o otimismo, afinal de contas se trata de um negócio bilionário. Para vencer o leilão do Projeto Gralha Azul, a Engie fez uma proposta à Aneel com deságio de 34,8% sobre o valor fixado pela agência para a receita anual permitida (RAP). Ela topou ganhar levando apenas ⅔ do prêmio. Com isso, começa recebendo R$ 231,7 milhões por ano como contrapartida pela construção e manutenção das linhas de transmissão.

Apesar de ter até março de 2023 para concluir o Projeto Gralha Azul, a Engie sempre planejou botar o sistema à disposição da ONS com antecedência. Outros papéis a que a reportagem teve acesso falavam em entregar a obra pelo menos doze meses antes do prazo. O motivo? Quanto antes fizer isso, mais cedo começa a receber pelo serviço.Diferente de uma rodovia pedagiada, que cobra por veículo, as concessionárias de linhas de transmissão recebem o RAP independente do uso que o mercado energético faz dele. Cada mês antecipado vale, numa conta de padaria, R$ 19 milhões para os cofres da empresa.

No setor elétrico, as LT’s (linhas de transmissão), são conhecidas como “ as minas de ouro” do setor. As LT’s ajudam a valorizar as ações da empresa, pois elas são um ativo estável e que, depois de instalado, exigem pouca manutenção – enquanto os ganhos são previsíveis e reajustados pela inflação, independente de haver crise econômica ou não. No caso do Projeto Gralha Azul, cujos pagamentos estão garantidos, por contrato, por 30 anos, haverá a correção pelo IPCA a cada cinco anos, em datas que já são conhecidas: 2023, 2028, 2033 e assim por diante. 

Segundo a própria Engie, o investimento no Projeto Gralha Azul, computados todos os custos, é de R$ 2,017 bilhões. Se o cronograma da multinacional francesa não fosse pressionado pela suspensão, e as obras fossem otimisticamente concluídas, como anunciou o responsável pelo projeto na reunião de acionistas, o empreendimento estaria pago em menos de 9 anos. E até 2048, considerando o RAP de R$ 231,7 milhões, sem a correção pela inflação, o retorno mínimo do negócio giraria em torno de R$ 4,5 bilhões. Mas deve ir muito além disso. 

É necessário considerar que trata-se de uma rede de distribuição nova, próxima a um polo industrial em expansão, vitaminado por políticas de incentivo fiscal como o Paraná Competitivo, o que serve de estímulo à venda de energia das geradoras para os consumidores livres – um mercado em expansão, que em cinco anos dobrou no estado, passando de 4.999 GWh em 2015 para 11.627 GWh em 2019. Nesse período, o número de clientes livres da Engie passou de 228 para 712 no segundo trimestre deste ano – triplicou.

“Bem relacionados”

Nos documentos que a Engie mantém na internet sobre o Projeto Gralha Azul, há uma apresentação, datada do dia 22 de dezembro de 2017, na qual ela analisa as razões da sua vitória no leilão da Aneel em que conquistou a concessão da linha de transmissão. Como diferenciais, a empresa lista já possuir duas usinas no Paraná, ter um projeto com custo de instalação menor do que o previsto pela Agência Nacional de Energia Elétrica, ser capaz de antecipar o início da operação e possuir “acesso a financiamento com taxas competitivas”.

Não dá para saber de que financiamento a Engie falava, mas, para o Projeto Gralha Azul, o Conselho de Administração da multinacional aprovou, no dia 10 de março deste ano, a tomada de financiamento no valor de R$ 1,480 bilhão do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Ou seja, aproximadamente 75% do valor total do empreendimento.

Na mesma apresentação, a Engie dizia já possuir experiência na construção de linhas de transmissão, que erigiu “para conexão de seus ativos de geração ao SIN [Sistema Interligado Nacional]”, e que a empresa “pretende continuar participando em futuros leilões de transmissão”. Para quem ainda irá debutar neste filão do mercado energético, o papo da experiência doméstica colou.

Quando falou com seus investidores no balanço do terceiro trimestre de 2020, nenhuma linha de transmissão “doméstica”, para “conexão de ativos”, apareceu no relatório. Lá estão somente os projetos em andamento, no Paraná e no Pará, que a Engie provavelmente utilizará como portfólio para ampliar sua posição no mercado energético. Alás, a disputa marcada pela Aneel para daqui a pouco, no dia 17 de dezembro, tem lotes em sete estados brasileiros e expectativa de R$ 7,4 bilhões em investimento.

O que salta aos olhos mesmo naquela apresentação, é a Engie argumentar que detém um “bom relacionamento com órgão ambiental do PR (IAP)”.  No caso, IAP era, em 2017, a sigla para Instituto Ambiental do Paraná, que hoje mudou de nome e se chama Instituto Água e Terra (IAT). O mesmo IAT questionado por aceitar a divisão do licenciamento em lotes no tamanho exato que dispensasse a avaliação ambiental do Ibama.

No campo dos indícios, tem mais. Durante a apuração, foi relatado à reportagem um encontro havido ano passado entre Marcio Nunes (secretário estadual do Desenvolvimento Sustentável e do Turismo, órgão do governo do Paraná ao qual o IAT é subordinado) e a direção da Engie, na sede da empresa, em Florianópolis, onde ele teria sido cobrado pela agilização no licenciamento. A reportagem preserva o direito de proteger o sigilo da fonte desta informação.

O canhão e a mosca

O dito popular “você não usa um canhão para matar uma mosca” é auto-explicativo e tem ainda mais valor no mundo dos negócios. Se você é uma empresa, buscando maximizar seus lucros, não vai desperdiçar recursos. Então, quando a Engie anuncia que ingressou no Superior Tribunal de Justiça (STJ) para retomar as obras no Paraná, atropelando a estratégia comunicada aos acionistas de discutir o caso primeiro no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, isto chama a atenção.

Na banca de advogados que a Engie contratou para apelar ao STJ está Gilson Dipp, ex-vice-presidente do próprio tribunal, de 2012 a 2014, quando se aposentou da carreira de magistrado, após 25 anos atuando na Justiça Federal.Também está lá, no time da multinacional, Cézar Ziliotto, ex-diretor-jurídico da Usina Binacional de Itaipu, de onde saiu em agosto de 2019 após 7,5 anos no cargo. Segundo a imprensa nacional, ele era uma indicação do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes. Aliás, Ziliotto soube da exoneração enquanto estava em Lisboa, participando de evento ao lado de Mendes.

Os nomes de Dipp e de Ziliotto encabeçam o grupo de defesa da Engie no STJ, que tem também Rafael de Alencar Araripe Carneiro, André Gustavo Meyer Tolentino, Adriana Coli Pedreira Vianna e Lorena Mello Figueiredo. É um canhão e tanto virado contra o pedido do  OJC, da SPVS e da Rede de Organizações Não Governamentais da Mata Atlântica (RMA) para que o Ibama simplesmente não seja escanteado do licenciamento ambiental do projeto.

Se puxar mais o fio, das árvores derrubadas para o fatiamento das licenças ambientais, o próximo nó que você encontrará é  a falta de transparência sobre a compensação ambiental do Projeto Gralha Azul.

Compensação descompensada

São inúmeros os impactos do empreendimento (veja no quadro abaixo). E um valor ainda desconhecido pela sociedade para compensar esse ataque ao meio ambiente. Esse é o resumo do impacto ambiental do projeto da Engie para a instalação das mais de 2 mil torres em uma linha de transmissão de 1 mil km que cortará o Paraná, cruzando os Campos Gerais e a Escarpa Devoniana – a maior Unidade de Conservação do estado e que abriga importantes formações geológicas, com campos nativos e florestas de araucárias. 

Batizar o empreendimento bilionário de Projeto Gralha Azul, em alusão à ave símbolo do Paraná, conhecida por ser a dispersora do pinhão, tendo um papel central na sobrevivência das araucárias é uma tentativa óbvia de dar verniz ambiental à iniciativa (greenwashing). Mas não há informações até agora sobre o valor que será desembolsado para compensação ambiental. Ele não é explicitamente mencionado no Estudo de Impacto Ambiental aprovado pelo Instituto Água e Terra. 

A ação conjunta do MPF e do MP-PR informa que uma lei federal prevê um investimento mínimo de 0,5% do total do custo do projeto em compensação ambiental. No caso, seriam necessários, no mínimo, R$ 10 milhões. Masa média de mercado prevista em cadernos de órgãos públicos e privados para projetos de infraestrutura desse porte é de 5% do valor global para compensação ambiental. Ou seja, aplicado esse percentual ao Projeto Gralha Azul, a compensação adequada a ser investida pela Engie deveria estar na ordem de R$ 80 milhõespara compensação dos impactos ambientais do projeto.

Falta de transparência

Naquela teleconferência com os acionistas, a Engie se esforçou para aparentar preocupação com o assunto. Mas ao falar de compensação ambiental, derrapou na forma como abordou a questão. De acordo com Eduardo Sattamini, para cada araucária derrubada outras três serão plantadas pela empresa. E diz que isso, na opinião dele, seria superior à compensação legal obrigatória – até aqui, não oficialmente divulgada.

“Ou seja, o que a gente quer mencionar é que o impacto, isso equivale a mais de um terço das araucárias que nós estimamos impactar nesse projeto, ou seja, para dar a dimensão efetiva do impacto ambiental desse projeto, que é muito pequeno em relação ao benefício que ele vai trazer para o fornecimento de energia no estado do Paraná”, disse Sattamini durante o encontro, aparentemente tergiversando. 

Mas “mudinhas” não repõe o estrago. Além de destruir áreas com cobertura natural, o corte das árvores já adultas significa uma espera de 80 anos para que uma planta atinja porte semelhante às araucárias derrubadas em Campo Largo, por exemplo. A floresta com araucárias já ocupou cerca de 200 mil km² do território brasileiro, principalmente nos estados do Sul. No Paraná, ela cobria 40% da área do Estado. Hoje restam menos de 0,8% bem conservados, segundo o último levantamento feito pela Fundação de Pesquisas Florestais do Paraná (Fupef), em parceria com o Ministério do Meio Ambiente, em 1998. 

Na ação judicial, MPF e MP-PR propuseram à Justiça “que o processo de licenciamento ambiental para a construção do empreendimento seja reiniciado, com a apresentação, pela empresa concessionária, de novos estudos de impacto ambiental”. Ainda de acordo com o a ação, “há, no licenciamento ambiental, patente ausência e insuficiência das compensações em relação aos impactos socioambientais do empreendimento, em especial aos danos e impactos decorrentes do corte e supressão de 23.398 espécimes da flora ameaçadas de extinção”. E pedem uma multa diária no valor de R$ 20 milhões no caso do desmatamento prosseguir antes do julgamento do mérito da ação. 

Menos impacto, mais caro

Para o geógrafo, Marcelo Ban Hung, do Laboratório de Geografia da UFPR (Universidade Federal do Paraná), o traçado implementado nos estudos de impacto ambiental contratados pela Engie poderia passar por áreas de reflorestamento, que já são locais alterados pelo homem. “Mas isso demandaria um custo de compensação [financeira] maior e que a empresa evitou. Caso optassem por um traçado alternativo que priorizasse áreas de reflorestamento, o impacto sobre os remanescentes florestais seria muito menor”, explicou.

Hung também avalia que há necessidade de realizar pelo menos pequenas alterações de traçado – que isso leva tempo. “Elas precisarão ser melhor desenhadas, a partir de um criterioso trabalho de campo, procurando reduzir o impacto sobre pequenas propriedades rurais, desviar de remanescentes florestais, áreas úmidas e de cavidades naturais, fundamentais inclusive para a sustentabilidade das torres, desviando de assentamentos e comunidades tradicionais e de áreas de expansão urbana”. 

Nesta conta entram os danos colaterais, pois para instalar uma torre de transmissão é preciso abrir estradas até as áreas, transportar equipamentos e grandes estruturas metálicas, etc. Ou seja, a área de influência direta do Projeto Gralha Azul é absurdamente maior que os já impactantes 220 campos de futebol de desmatamento.

Geração é maior que demanda

A primeira coisa que vem à mente quando alguém fala em apagão é que “faltou” energia. A Engie, no comunicado catastrofista, não se esforça para desfazer esse mal entendido, explicando que o Paraná produziu, por exemplo, mais que o dobro da energia que efetivamente consumiu em 2019. Os números são públicos e divulgados rotineiramente pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), ligada ao Ministério de Minas e Energia.

Tomando os últimos cinco anos, o consumo energético do Paraná subiu 8%, passando de 29.861 GWh para 32.242 GWh. No mesmo período, a EPE registrou produção de 99.410 GWh no Paraná em 2015 e de 81.733 GWh em 2019 – uma queda de 17%. Mas ainda assim é mais que o dobro do consumo, e se o estado fosse um circuito fechado, não teria problemas de desabastecimento por geração insuficiente. 

Todos os anos o Operador Nacional do Sistema Elétrico publica o Plano da Operação Energética, com as estratégias do ONS para prevenir o desabastecimento no Brasil. Na edição mais recente, o Paraná não é citado uma única vez. Ele deixa claro também que “o balanço de energia tem significado apenas indicativo da oferta estrutural de energia elétrica do SIN,na medida em que não considera as transferências de energia entre os subsistemas ao longo do ano e a redução de disponibilidade de energia das usinas hidráulicas em situações hidrológicas desfavoráveis”. 

No Brasil, em 2019, foram gerados 626.321 GWh, ante um consumo de 482.226 GWh, segundo o Anuário Estatístico de Energia Elétrica 2020 da EPE. Do total gerado, 63,5% veio de hidrelétricas, que podem ter sua capacidade variando conforme a estiagem impacta a capacidade dos reservatórios. Ao mesmo tempo, diante de um cenário de desabastecimento, o governo federal pode autorizar, como vem fazendo, a ativação de outras fontes, como as termelétricas. Ainda que ambientalmente isso seja discutível, em termos de segurança do sistema não há motivo para profecias catastrofistas.

A hora das PCHs

“Com a construção dessas pequenas centrais [hidrelétricas, ou PCHs] logo o Paraná terá uma nova Itaipu aqui”, brincou, visivelmente despreocupado, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, ao visitar o estado no último dia 6 de novembro. Ao lado de Ratinho Júnior, no município de Renascença, os políticos festejaram a inauguração de uma PCH com capacidade para gerar 6 MW de energia. Por coincidência, foi a mesma data da reunião da Engie com seus acionistas.

O comentário de Bolsonaro foi uma tabelinha com o governador do Paraná, que destacou terem sido autorizados mais de 40 empreendimentos desse tipo recentemente no estado. “Essa PCH tem uma importância simbólica. Em duas décadas eram 21 PCHs liberadas no Paraná. Em um pouco mais de um ano e meio, mais de 40. Esse é o modelo de geração de energia do Brasil”, animou-se a dizer, no evento, o político Ratinho Junior. “O segredo é ter uma equipe afinada, com o compromisso de ser eficiente e dar velocidade ao processo sem deixar de ser rígido com as exigências ambientais”, acrescentou.

Então não há risco algum de apagão no Paraná? Especialistas consultados pela reportagem, mas que preferiram não se identificar, já que se trata de um tema delicado e complexo, com pesos-pesados no ringue, relativizaram a ameaça. Segundo eles, os desafios vão além da geração, pois existe o problema da ocorrência de sobrecarga na infraestrutura instalada (quando há mais capacidade de geração, mais potência instalada que a linha de transmissão suporta) e da subtensão (quando ocorre aumento significativo da carga demandada pelo mercado consumidor). Daí a importância de os governos coordenarem o equilíbrio entre geração e infraestrutura.

Barato pode sair caro

Se não houver investimentos concomitantes na infraestrutura, uma expansão desenfreada de PCHs, por exemplo, pode levar a crises de desabastecimento por excesso de geração, pois a sobrecarga de oferta ocasiona o “aquecimento” das linhas – conhecido como efeito Joule – que evolui para uma queda no fluxo de potência, resultando em apagões. Nessa perspectiva, o Projeto Gralha Azul impactaria positivamente o consumo doméstico e o de centros industriais no  Paraná e no Sudeste. O problema é o discurso catastrofista servir como estratégia comercial para contornar a legislação e beneficiar os resultados da empresa. Qual é a opinião dos ambientalistas? Eles contam a seguir.

“De quem é a culpa da suspensão das obras do Sistema de Transmissão Gralha Azul? Esta é responsabilidade do Instituto Água e Terra, por ter concedido licenças com base em estudos ambientais falhos, e da empresa, por não assumir sua responsabilidade socioambiental e acreditar que ações isoladas de filantropia ambiental irão reparar os danos causados por seu empreendimento ao meio ambiente e a toda a sociedade paranaense”, diz uma carta elaborada pelo Gupe (Grupo Universitário de Pesquisas Espeleológicas), pela SPVS e por membros da UEPG (Universidade Estadual de Ponta Grossa) e da UFPR (Universidade Federal do Paraná) que realizam ações e pesquisas na região afetada pelo Projeto Gralha Azul. 

“Acham que ambientalista é contra o desenvolvimento, contra a indústria. Isso é balela, é mentira. O que  exigimos é respeito à legislação ambiental, aos princípios da administração pública e à ciência. Se a opção ambientalmente correta é a mais cara, paciência, pois o interesse desta e das próximas gerações deve se sobrepor aos interesses privados do momento. Além disso, é preciso de conhecimento na gestão do erário público. Passamos pela maior crise hídrica do século no Paraná, mas continuamos investindo nas mesmas formas de geração de energia. Ocorre que, se temos um governo negacionista das mudanças climáticas – que devem alterar permanentemente a sazonalidade das chuvas – podemos aplicar muito mal os recursos públicos.  De que vai adiantar tanta linha de transmissão ou centenas de PCHs?”, resumiu Giem Guimarães, do OJC.

Nesta quinta-feira, dia 10 de dezembro, o OJC, a SPVS e a RMA tem um encontro marcado com a Engie. Trata-se de uma audiência de conciliação na ação civil pública que suspendeu as obras do Projeto Gralha Azul, marcada para às 14 horas, na Justiça Federal em Curitiba.

1 Comentário

  1. Matéria extremamente importante e muito bem feita. Sou um engenheiro florestal e estou iniciando no mundo financeiro, um “microinvestidor” na bolsa de valores. Durante estudos sobre a empresa ENGIE (com intuito de comprar suas ações) encontrei essa matéria, ao saber sobre as ilegalidades que afetaram diretamente a floresta de araucária e o meio ambiente no Estado do Paraná minha esposa e eu decidimos abdicar de investir nosso diminuto e suado recurso nessa empresa. Acho que o lucro não pode vir antes da ética, dos princípios morais e do irrestrito respeito ao meio ambiente.

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