Estrada pode cortar Parque do Iguaçu e abrir grave precedente

A maior área de Mata Atlântica de interior que ainda existe no Brasil pode estar com os dias contados. O Parque Nacional do Iguaçu, com 185 mil hectares, abriga 550 espécies de aves, dezenas de répteis e mais de 120 mamíferos. É o último refúgio da onça-pintada no Sul do país. Toda essa riqueza ambiental corre sério risco. Um projeto de lei, que tramitou na Câmara Federal em 2013 e foi desarquivado pelo senador Álvaro Dias (Podemos) no ano passado, pode reabrir uma estrada em meio a essa importante unidade de conservação mundial e cortar ao meio o Parque, que abriga diversas espécies ameaçadas de extinção.

A abertura da estrada, que ligaria os municípios de Serranópolis e Capanema, abriria, ainda, um precedente grave e bastante preocupante. O projeto de lei (7.123/2010) propõe que o caminho contemple uma nova categoria de Unidade de Conservação: o de estrada-parque. Se isso for aprovado, facilitará a construção de rodovias em meio de outros parques e unidades de conservação brasileiras, dificultando a preservação do meio ambiente em todo o país. A abertura da estrada deve fazer, inclusive, com que a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) retire do Parque o título de Patrimônio Natural da Humanidade, concedido em 1986.

O Parque Nacional do Iguaçu existe como Unidade de Conservação desde 1939. A reabertura do chamado “Caminho do Colono”, criado na década de 1950 e cujo fechamento foi determinado pela Justiça em 1986, também fere a legislação. Isso porque o Superior Tribunal de Justiça (STJ) também decidiu manter a estrada fechada em 2001 e essa decisão permanece válida. Ou seja, já um caso “transitado em julgado”, o que significa que foi julgado em seus últimos recursos e não há mais possibilidade de argumentações e ações contrárias à decisão.

“Esse projeto também tem apoio dos prefeitos da região, que estão querendo agradar parte da população em ano eleitoral. Há um claro interesse político por trás”, ressalta Giem Guimarães, diretor-executivo do Observatório de Justiça e Conservação (OJC).

Estrada do Colono. Crédito: MPF

Para a bióloga Angela Kuczach, diretora-executiva na Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação (Rede Pró-UC), mesmo com a decisão judicial estar esgotada desde 2001, “a cada quatro anos esse tema ressurge como se fosse a solução para o progresso na região, o que não é verdade”. “Mas é um discurso usado politicamente. Além disso, é importante ressaltar que a estrada, que um dia foi chamada de “estrada do colono” ficaria localizada próxima de uma das regiões mais protegidas do Parque Nacional do Iguaçu. Cortar o Parque ao meio é condenar a natureza e a biodiversidade que estão presentes ali”, afirma.

A mesma opinião é compartilhada por Clóvis Borges, diretor-executivo da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS). “Reabrir a estada é reviver uma cena que já foi rechaçada pela sociedade paranaense. Não se justifica de modo algum. Isso enfraquece as unidades de conservação brasileiras. Além disso, a criação de um modelo novo, a chamada ‘estrada parque’, serve, simplesmente, para atender a uma conivência e politicagem da região”, sentencia. O Parque do Iguaçu representa 1% do território estadual. “Estão inventando um advento que não existe. A lei não prevê a figura de ‘estrada parque’”, completa Clóvis.

Risco de extinção

Juntos, os parques nacionais do Iguaçu, no Brasil, e do Iguazú, na Argentina, totalizam 600 mil hectares e formam a maior área protegida contínua no centro-sul do continente. Abrigam espécies vulneráveis ou ameaçadas de extinção, como a peroba-rosa, o jacaré-de-papo-amarelo, o puma e a onça-pintada. Em 2010, por exemplo, foram contabilizadas apenas 11 onças no lado brasileiro. Hoje, são 28 – o que aponta uma recuperação lenta e difícil.

Jacaré papo amarelo. Crédito: Divulgação Parque das AvesJacaré papo amarelo. Crédito: Divulgação Parque das Aves

O projeto de lei que busca reabrir a estrada foi proposto em 2010 pelo então deputado federal Assis do Couto (PDT) e acabou desarquivado no ano passado pelo senador Álvaro Dias. A tramitação avançada na Câmara – em 2013 – foi considerada por Dias uma vantagem para conseguir aprovar a reabertura da rodovia. Esse é o projeto mais avançado: no ano passado foi aprovado pela Comissão de Infraestrutura do Senado e encontra-se agora na Comissão de Meio Ambiente.

O relator é o senador Fabiano Contarato (Rede), que já deu parecer contrário à intenção. Em rede social, ele afirmou ser contra o projeto. “Sou contrário a isso porque a antiga estrada está fechada. A Mata Atlântica é o bem maior a ser preservado”, escreveu. O PL também deve passar pela Comissão de Desenvolvimento Regional e Turismo. Se for aprovado, irá diretamente para a sanção presidencial, sem análise do plenário – isso significa que os senadores não irão votar sobre o tema. O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) já defendeu publicamente a reabertura da Estrada. “A estrada do colono, se depender de nós, a licença ambiental vai ser dada”, disse em entrevista a jornalistas em maio de 2019.

Há também outro projeto, de autoria do deputado federal Nelsi Coguetto Maria, o Vermelho (PSD), que também propõe a recriação da rodovia, cortando o Parque Nacional do Iguaçu. Essa mobilização dos políticos paranaenses está alinhada a pedidos dos prefeitos da região e de cooperativas da região oeste do Paraná, para ‘facilitar’ o escoamento de soja, milho, trigo, frango e leite, por exemplo. Vermelho é empreiteiro e proprietário do grupo Cogueto Maria, famoso na região por realizar pavimentação asfáltica. De 2016 a 2018, a empresa dele venceu a maioria das licitações de Foz do Iguaçu para fazer pavimentação na cidade. Além de Foz, a empresa de Vermelho disputa e, muitas vezes, vence licitações para asfaltar as cidades do oeste do estado. Caso seja aberta uma licitação para pavimentar a rodovia que se pretende abrir em meio ao Parque o grupo empresarial de Vermelho deve participar da concorrência.

Custo elevado em todos os sentidos

O custo para essa obra seria muito elevado em todos os sentidos: do ponto de vista financeiro, ambiental e também de segurança pública. O Ministério Público Federal (MPF) estima que seria necessário gastar R$ 50 milhões para abrir a estrada. Além disso, 17 quilômetros de Mata Atlântica teriam que ser derrubados, com a realização de um corte de dez a 15 metros de largura bem no coração do Parque. Seriam desmatados, portanto, 20 hectares da mata, sem contar os prejuízos do chamado “efeito de borda”, que são os impactos diretos e indiretos que um desmatamento causa para regiões próximas de onde ele ocorre. Esse efeito considera a alteração nas condições microclimáticas (temperatura, umidade, insolação, vento etc.), produzindo grande desequilíbrio no bioma como um todo.

A fragmentação dessa área colocaria em risco toda a flora e fauna da região. Além disso, a estrada, segundo o MPF, seria um novo ponto para tráfico de drogas e contrabando.

Em nota, o MPF reforça que “não existe a possibilidade de uma estrada ser ecológica e que a criação da ‘Estrada Parque Caminho do Colono’ traria como consequência a perda de parte do território do Parque Nacional do Iguaçu, o que representa um grande retrocesso na preservação do meio ambiente”.

Além do desmatamento, a reabertura da estrada provocaria, conforme o MPF, a “ruptura” do ecossistema, com o consequente isolamento de animais, pois algumas espécies não atravessam áreas desmatadas; erosão e assoreamento de cursos d’água; morte de animais por atropelamento; difusão de doenças e contaminação biológica devido ao tráfego de veículos e de pessoas; risco de degradação ambiental por acidentes de trânsito dentro do Parque, com o consequente vazamento de combustível; a facilitação da presença de pescadores, caçadores e exploradores ilegais de palmitos.

Floresta regenerada

O Ministério Público Federal (MPF), em Foz do Iguaçu, realizou em setembro de 2019 um sobrevoo de helicóptero no Parque Nacional do Iguaçu e constatou a regeneração total da vegetação na área do leito da antiga estrada.

Durante o sobrevoo, o comandante da aeronave da Polícia Rodoviária Federal teve dificuldade de localizar a área do antigo caminho, devido ao completo estado de regeneração da floresta. O antigo leito da estrada já desapareceu sob a vegetação, razão pela qual sua localização só foi possível por meio das coordenadas geográficas com uso de GPS.

A procuradora da República Daniela Caselani Sitta e o técnico de segurança institucional do MPF, Jean Matheus Tessari Wagner, observaram que da antiga estrada resta apenas uma quase imperceptível “cicatriz” em meio à floresta, ou seja, um discreto “risco” e apenas em alguns pontos onde a mata regenerada no antigo leito ainda é mais baixa.

Para Paulo Roberto Castella, engenheiro agrônomo e funcionário da Secretária Estadual de Meio Ambiente, a abertura da estrada é preocupante. Ele, que foi assistente do Estado do Paraná na perícia nos anos 2000, é completamente contra a reabertura do caminho. “O que existe hoje eu não posso chamar nem de estrada e nem de caminho. Essa proposta assusta muito pelo meio ambiente que encontramos. O que tinha de estrada já está coberta por floresta”, ressalta.

De acordo com o que foi apurado pelo MPF, a reabertura da estrada exigiria um desmatamento de 20 hectares dentro do Parque Nacional do Iguaçu, área que se regenerou nos últimos anos, desde o fechamento definitivo da estrada por uma decisão judicial, em 2001.

Breve histórico

A chamada “estrada do colono” foi aberta pela primeira vez na década de 1950 por moradores da região para ligar as cidades de Serranópolis e Capanema. Naquela época, o Parque Nacional do Iguaçu já existia como uma Unidade de Conservação. Somente em 1986 é que o caminho foi fechado pela Justiça depois de uma ação movida por parte da comunidade, capitaneada, principalmente, pela jornalista e escritora Teresa Urban, que agiu em diversas frentes durante décadas a favor da preservação do patrimônio natural paranaense e brasileiro. Teresa, que era militante das causas ambientais, lutou ao longo de quase três décadas para que a estrada fosse fechada e, posteriormente, encampou campanhas para que o caminho jamais fosse reaberto.

A jornalista e ambientalista Teresa Urban foi uma das mais aguerridas defensoras do Parque Nacional do Iguaçu

Mas, os prefeitos dos municípios foram contra. Protestos de parte de moradores tomaram conta da região. Até que, em 1996, moradores da região reabriram a estrada a força, o que resultou em uma longa batalha judicial que se estendeu por 20 anos.

Em 2001, houve, então, a decisão final. Após determinação judicial, a estrada foi fechada pela Polícia Federal. Em 2003, os moradores voltaram a invadir a região e a abrir a estrada. Em poucos dias, ela foi novamente fechada por determinação da Justiça Federal. Hoje, a floresta já engoliu a antiga estrada.

Entre 1999 e 2001, a reabertura ilegal da estrada levou à classificação das Cataratas como “patrimônio em perigo” pela Unesco. Em 2014, um relatório da Unesco voltou a expressar preocupação com a possível reabertura da estrada e lembrou que “a conservação da biodiversidade na Mata Atlântica é uma prioridade global e razão principal para a inclusão da região na lista de patrimônios da humanidade, para além das impressionantes Cataratas”. O documento ainda expressa preocupação com a possibilidade de uma nova legislação sobre estradas-parque legitimar a abertura de estradas em outras unidades de conservação do país.

Onças em risco

A caça era uma prática muito comum na região na época em que a estrada estava aberta. Crédito: Zig Koch

O maior habitat de onças-pintadas na região sul do Brasil é o Parque Nacional do Iguaçu. O local é considerado de altíssima relevância para a conservação e preservação do felino. A abertura de uma rodovia em meio ao Parque colocaria, novamente, a população do animal, e todo o esforço feito para mantê-la, em risco.

Além da perda de habitat, há o risco de caça ilegal, redução expressiva das presas – que são seus alimentos – e atropelamentos, por exemplo. “A presença de certos animais na natureza mostra que o ecossistema da região está saudável. Um desses animais é a onça-pintada, que é um animal de topo de cadeia e está ameaçada de extinção no Brasil.  O Parque Nacional do Iguaçu é considerado um dos mais importantes redutos da espécie no Sul do país”, explica o biólogo Peter Crawshaw, que tem mais de 40 anos dedicados aos estudos e conservação de onças-pintadas e é considerado uma referência mundial na área.

O número de onças-pintadas no Parque Nacional do Iguaçu, em Foz do Iguaçu, na região oeste do Paraná, aumentou quase 27% em dois anos, segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Desde 2009, especialistas do projeto Onças do Iguaçu realizam um censo da espécie. No último levantamento, divulgado em novembro, referente ao resultado de 2018, foram encontradas 28 onças-pintadas no Parque. O resultado foi 27% a mais do que no censo anterior, sobre 2016, que revelou a presença de 22 animais da espécie. Em 2009, eram até 11 onças.

Imaginário coletivo não confere com a realidade

Parte da população da região de Serranópolis e Capanema, no oeste paranaense, guarda uma memória afetiva de que a estrada era algo “bom” e que ajudava no progresso das cidades. No entanto, os fatos mostram exatamente o contrário.

Em 2012, a Polícia Federal emitiu uma nota em defesa da manutenção do fechamento da estrada. Em ofício, a PF afirmou que, até ser fechada, a estrada era “largamente utilizada por criminosos como caminho para transportar mercadorias ilícitas, armas, munições e drogas, além de facilitar a prática de crimes ambientais” e que a reabertura “seria mais um complicador no que se refere ao controle de nossas fronteiras”. O texto foi assinado pelo então superintendente da PF no Paraná, José Alberto de Freitas.

Um documento foi entregue pelo Ministério Público em 23 de novembro de 1998 denunciando a utilização do caminho como rota de tráfico de drogas. No dia 18 de novembro de 1999, a Polícia Civil de Medianeira apreendeu cerca de 20 quilos de maconha que estavam sendo transportados através da Estrada.

Nas ações de repressão da Polícia Florestal do Paraná no combate ao extrativismo ilegal e caça aponta diretamente o uso da estrada para fins ilegais. De 1999 a abril de 2002 foram contabilizadas 16 infrações relacionadas à pesca, com apreensão de 841 metros de rede, um barco, apreensão de duas espingardas, 85 cartuchos de balas, cinco facões. Animais também foram apreendidos, como macaco-prego, capivara, paca e tamanduá-mirim. Em relação à flora foram apreendidos 2060 palmitos in natura e 191 frascos com o produto envasado.

“É uma região de fronteira. O risco da estrada, como já foi constatado no passado, ser usada como rota de tráfico, contrabando, caça ilegal, extração vegetal ilegal existe. Não à toa que a Polícia Federal tinha classificado o caminho como ‘zona perigosa’”, salienta Angela Kuczach, diretora-executiva na Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação.

O que diz a lei?

O artigo 11 da Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/2006) “veda o corte e a supressão de vegetação primária ou nos estágios avançado e médio de regeneração do bioma Mata Atlântica, nas características apresentadas neste local da unidade de conservação”.

Atualmente, na legislação brasileira não existe a previsão de Unidade do tipo “estrada-parque”. Esta previsão pode, segundo o Ministério Público Federal, ser enquadrada na categoria Área de Proteção Ambiental (APA), cujo enfoque principal é a exploração econômica com critérios para garantir a sustentabilidade ambiental.

Porém, o MPF entende que essa categoria é incompatível com o grupo de unidades de preservação em que se enquadra o Parque Nacional do Iguaçu, que é de Proteção Integral, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais.

Economia deveria levar em conta a preservação do Parque

Ao invés de construir uma estrada dividindo o Parque Nacional do Iguaçu pela metade, o ideal seria investir na preservação do Parque. Aliar preservação ambiental e progresso social e econômico deveria ser o caminho para visar o progresso na região. Clóvis Borges, diretor da SPVS, aponta que as Unidades de Conservação são áreas com potencialidade de uso econômico e geração de renda.

“Uma grande economia é gerada com a vinda de turistas na região do Parque do Iguaçu. É preciso respeitar esse patrimônio natural e não o perder”, aponta. Angela Kuczach, diretora da Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação conta que em 2001, quando a estrada foi fechada pela última vez, o número de visitantes no Parque era de 800 mil pessoas por ano. “Hoje já são mais de dois milhões de pessoas, sendo que muitos são estrangeiros. Esse volume de turistas só cresce a cada ano e movimenta a compra de produtos agrícolas dos produtores locais para abastecer restaurantes e hotéis na região, além de outros produtos, como confecções, camisetas, entre outros”, afirma.

Angela ainda se mostra preocupada com a eventual retirada do título de Patrimônio Natural da Humanidade caso a estrada seja reaberta, o que a Unesco já prometeu fazer. “Isso certamente impactaria muito o número de turistas na região. O número de estrangeiros que visitam o Parque, e que hoje representam a maioria dos turistas, cairia significativamente”, sentencia.

Corpos estão sepultados na antiga estrada

A antiga estrada do colono também está diretamente ligada ao período do Regime Militar no Brasil. Em 12 ou 13 de julho de 1974, cinco pessoas – das quais quatro brasileiros militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e um argentino – foram executadas e tiveram seus corpos ocultados em uma vala em local incerto, na floresta onde se localiza o Parque Nacional do Iguaçu, próximo à antiga estrada.

Os nomes das vítimas são Joel José de Carvalho, Daniel Carvalho, José Lavecchia, Vitor Carlos Ramos e Ernesto Ruggia. A morte dessas pessoas, cujos corpos até hoje estão desaparecidos, é relatada no livro “Onde foi que vocês enterraram nossos mortos?”, do jornalista Aluísio Palmar.

Foram feitas diligências nos últimos anos tentando encontrar os restos mortais dos perseguidos políticos da Ditadura Militar assassinados em uma emboscada, quando o Brasil era comandado pelo general Ernesto Geisel.